Roberto Godinho faz depoimento sobre sua história de vida e experiência na Cetesb, onde atuou entre 1975 e 1995, tendo sido o  principal responsável pela instalação da Rede Telemétrica de Qualidade do Ar da empresa . Em 2011, por ocasião das comemorações do Ano Internacional da Química, foi homenageado e teve seu nome incluído na Galeria de Honra do Fórum de Químicos.

Eu nasci há 70 anos, num 4 de fevereiro de 1948, no município de São Roque, em um bairro chamado Canguera. Canguera era uma estação do ramal Mairinque a Santos, da antiga Estrada de Ferro Sorocabana. E lá, naquela época, a paisagem era dominada pelas parreiras de uva para fazer vinho de mesa. Eu acho importante a época e o lugar onde a gente nasceu, porque esses dados caracterizam de uma forma marcante a sua trajetória de vida, ainda que você não se dê conta.

Foi nesse lugar que eu cresci, sentindo cheiro de uva e vinho na safra, brincando nas roças de meu pai com os filhos de outros lavradores. No bairro a escola oferecia até o terceiro ano primário. Para fazer o quarto ano e completar o primário era preciso ir até Mairinque. Esse percurso era feito de trem, depois de percorrer de bicicleta, os dois quilômetros que separavam nosso sítio da estação de trem.

Para fazer o ginásio e depois o científico era preciso ir um pouco além, pegar mais um trem e chegar até São Roque. Foi o que fiz.

Depois entrei na USP, no instituto de Química, onde me formei em 1971, obtendo o Bacharelado em Química com atribuições tecnológicas e a Licenciatura em Química. Durante o curso, morei na casa de meu irmão, que fazia carreira acadêmica no Instituto de Química. Eu morava no quintal, num aposento de madeira que meu pai mandou fazer numa carpintaria em São Roque e transportou de caminhão para a Vila Sônia em São Paulo. Era preciso criatividade para fazer economia e criatividade nunca faltou ao meu pai.

Lembrei de um texto que escrevi lembrando dos tempos de estudante no Instituto de Química:

MINHA ESCOLA

Química Geral era no Queijo

Analítica era no B2

Físico Química no B3

Bioquímica no B4

E Orgânica no B5

No B6 era o Centro Acadêmico, a Biblioteca e a Lanchonete.

 

A Jean ganhou uma flor do Ênio antes da aula no Queijo

O Professor Senise deu uma aula antológica sobre Equilíbrio

Levei um trote memorável no Queijo

Hoje lembrei dos meus professores

Ernesto, Senise, Cilento, Blanca, para citar alguns

Lembrei também do Espírito da Glete

E daqueles inesquecíveis dias de intenso aprendizado.

Meu primeiro emprego, depois de formado, foi na Henkel em Jacareí. Morava num hotel em São José dos Campos e ia todo dia para Jacareí, na Kombi lotada da companhia. Antes de me formar, dava aula de Química, a noite, num colégio estadual no Brás.

Fiquei pouco tempo na Henkel, porque recebi um convite para vir trabalhar numa equipe que estava iniciando um trabalho pioneiro, na área de controle da poluição no ABC, sob orientação do Dr. Cesar Macher, consultor da Organização Panamericana da Saúde. Era a CICPAA – Comissão Intermunicipal de Controle da Poluição das Águas e do Ar, cuja área referente a água estava sendo absorvida pela CETESB e a parte referente ao ar pela SUSAM – Superintendência de Saneamento Ambiental, uma autarquia da Secretaria da Saúde. Lembro-me muito bem das instalações, na Rua Heloisa Pamplona, 279 no Bairro da Fundação em São Caetano do Sul. Ficava embaixo do Palácio dos Esportes. Logo depois da absorção dos serviços da CICPAA pela SUSAM, a direção foi transferida para a Rua Tamandaré em São Paulo, permanecendo em São Caetano o chamado Centro Tecnológico, que abrigava o serviço de Avaliação de Qualidade do Ar. Foi o começo de tudo. Ali era o laboratório que realizava as análises nas amostras coletadas nas redes de amostragem do ar da época.

Quando comecei a trabalhar em São Caetano em 1971, existia uma rede de amostragem que media Taxa de Sulfatação, Poeira Sedimentável e Índice de Corrosividade. Eram dispositivos estáticos que mediam os efeitos da atmosfera sobre uma vela de peróxido de chumbo ( taxa de sulfatação ), sobre um pote de vidro aberto ( poeira sedimentável ) e sobre uma moeda de aço ( índice de corrosividade ). Esses corpos de prova ficavam expostos durante um mês e depois eram levados para o laboratório onde eram analisados e calculados índices de poluição. Havia também uma estação de amostragem na Estação Rodoviária em São Paulo, que fazia parte da Rede Panamericana de Amostragem do Ar e que media concentração de dióxido de enxofre e de poeira em suspensão. Esse foi o começo da avaliação de qualidade do ar em São Paulo.

Nesse começo eu era solteiro e morava em São Caetano, numa pensão no Bairro da Fundação, próximo às Industrias Matarazzo. Dava para ir a pé para o trabalho.

Uma parada demorada na CETESB

Em 1975 a CETESB absorveu os serviços de controle de poluição do ar, que eram executados pela SUSAM. Em termos jurídicos, a CETESB sub-rogou as obrigações da SUSAM e nós passamos a ser empregados da CETESB desde nossa admissão na SUSAM.

A CETESB foi uma grande escola. A política de desenvolvimento de recursos humanos da companhia era algo notável. Havia uma grande preocupação com a formação e treinamento do corpo técnico, criando muitas oportunidades de desenvolvimento.

Um marco na luta pela preservação do meio ambiente foi a promulgação da lei 997 e a sua regulamentação, em 1976. Ali foram estabelecidas as bases de todo trabalho de controle da poluição.

Falando especificamente da minha área de atuação, a área de avaliação de qualidade do ar, houve um grande desenvolvimento dessa atividade, principalmente na década de 70, com a formação de uma boa equipe, com a implantação das redes de monitoramento, com a aquisição de novos equipamentos. É dessa época a implantação do monitoramento automático da qualidade do ar, com estações remotas fornecendo dados em tempo real.

Esse monitoramento que cobria toda a Região Metropolitana da Grande São Paulo e Cubatão permitia a implementação do Plano de Emergência de Episódios Críticos de Poluição do Ar, previsto na lei 997, que tinha uma grande importância na conscientização da existência do problema, e também para evitar o atingimento de níveis críticos de poluição do ar. Sempre achei que essa nossa atuação estava à frente de outras ações também necessárias, em outro setores também importantes. Eu me lembro de uma visão que me incomodava muito: ver crianças brincando no esgoto correndo a céu aberto, ao lado da nossa estação automática na Vila Parisi, em Cubatão. Era um contraste que me incomodava.

É sempre muito prazeroso lembrar das realizações da CETESB. A participação na equipe multidisciplinar que atuou no Plano de Controle da Poluição em Cubatão, sem dúvida, foi um fato marcante. Era um programa abrangente que envolvia muitos aspectos, desde a caracterização do problema, a ação nas emissões com avaliação das fontes e da qualidade ambiental e o acompanhamento dos efeitos, como por exemplo, a recuperação da cobertura vegetal da Serra do Mar. É uma lembrança das mais agradáveis.

Só para citar mais uma ação marcante: A implementação do Plano de Controle das Emissões Veiculares. Poluição do ar sempre esteve tradicionalmente ligada a fontes fixas industriais. Deslocar a preocupação também para as fontes móveis, dando aos veículos a atenção proporcional a sua participação foi um trabalho importante. Lembro da aplicação de um modelo matemático que calculava a participação dos diversos tipos de fontes na formação da poluição do ar, mostrando a contribuição de cada tipo de fonte que deveria ser atacada. Foi um belo trabalho do Químico Claudio Alonso e sua equipe. Ali começava um trabalho de controle da poluição veicular baseado em dados muito importantes.

Eu gostaria de destacar um outro aspecto do trabalho do qual participei na CETESB. Era um trabalho em equipe com um envolvimento muito grande de todos os participantes. A CETESB teve um papel muito importante na minha vida, no aspecto de como tratar a coisa pública. Eu aprendi muito como fazer, nos momentos bons e como não fazer, nos momentos ruins. Sim, porque eu atravessei momentos ruins na CETESB e deles também tirei bons ensinamentos.

Vocês sabem do que me lembro também com saudade? Dos almoços no refeitório e depois das voltas pelas arborizadas ruas nos arredores da CETESB. Eu gostava da comida do refeitório e das conversas com os amigos, naquelas caminhadas para baixar a comida. Bons tempos e bons papos.

Eu não posso deixar de contar sobre os antecedentes da minha ida para Seattle, nos Estados Unidos, onde fui fazer mestrado. A CETESB enviava seus técnicos para fazer mestrado nos Estados Unidos. A política de recursos humanos da CETESB era muito avançada em termos de treinamento. Um dia de julho de 1978 fui chamado na Diretoria e fui consultado se eu gostaria de fazer mestrado nos Estados Unidos. É que o funcionário designado para ir aquele ano tinha tido um problema e não poderia ir. Tudo seria maravilhoso, não fosse o fato de o curso começar em setembro. Não havia tempo a perder, teria que ser uma decisão rápida. Era pegar ou largar. Fui pra casa a tarde pensando qual seria a reação da minha esposa. Nós tínhamos um filho de 4 anos e uma filha de 3 anos. Aceitar o desafio significava estar viajando com duas crianças para passar um ano nos Estados Unidos em menos de 2 meses. E havia um monte de providências a serem tomadas, inclusive toda documentação necessária para a viagem e matrícula na universidade. Não era fácil decidir e mais difícil ainda deixar passar a oportunidade. Minha esposa, que sempre me deu o maior apoio, me encorajou a aceitar. Era o empurrão que eu precisava. No dia seguinte estava eu na Diretoria comunicando que aceitava. Daí em diante foi uma correria insana. Entre as tarefas por realizar eu tinha que providenciar uma série de documentos para matrícula, inclusive histórico escolar que demandava algum tempo na USP. O prazo era exíguo, mas eu me propus a fazer todo esforço para conseguir. O fato é que quando consegui juntar toda documentação, considerando a demora do envio pelo correio, a documentação não chegaria a tempo na universidade. Foi aí que pensei: não vou perder todo esforço que fiz. Saí da CETESB e fui para o Aeroporto de Congonhas. A ideia era encontrar uma boa alma, que estivesse indo para os Estados Unidos naquela noite e se dispusesse a colocar o envelope contendo a documentação numa caixa de correio lá. Fui para o aeroporto entusiasmado com minha brilhante ideia. Quando cheguei, me deparei com o saguão internacional vazio. Fiquei paralisado por um instante, olhando os funcionários encerrando os trabalhos. Fui até um dos balcões e perguntei se não havia nenhum vôo para os Estados Unidos aquela noite. O funcionário me informou que os passageiros do último vôo tinham acabado de entrar. Ainda me lembro da estranha sensação de frustração que tomou conta de mim. Encostei no balcão incrédulo: por pouco tinha dado tudo certo. Estava eu ali pensativo e desanimado e eis que sai lá de dentro uma moça correndo e se dirigiu a um grupo de pessoas que provavelmente seriam parentes que ainda estavam alí. Não vacilei nem um segundo, aquela moça era minha salvação. Só esperei ela resolver o assunto com os parentes e a abordei de uma forma muito decidida, explicando minha situação. Eu dependia da sua boa vontade. Ela tomou o envelope nas mãos, olhou o destinatário e me disse: não preciso nem por no correio, estou indo para Seattle, estudo na Universidade de Washington, vou fazer minha matrícula amanhã, entrego a documentação em mãos. Saiu correndo com meu envelope e desapareceu na área de embarque. Naquele dia, depois disso eu sentei e chorei.

Eu trabalhei na CETESB até 1995. O dia 16 de agosto, dia do aniversário da minha cidade, foi meu primeiro dia de aposentado. Aquele ano, achei que as festividades da minha cidade foram para comemorar minha aposentadoria.

No começo da carreira eu morei em São Caetano, depois com a mudança do serviço para São Paulo eu me mudei para o Caxingui e depois em 1986 eu me mudei para minha terra natal e viajava todo dia para São Paulo. Naquela época minha viagem era mais rápida do que a de muitos colegas que moravam na capital. Hoje a coisa mudou, as estradas vivem congestionadas. Então quando eu me aposentei eu já morava em São Roque.

Existem muitas maneiras de encarar a aposentadoria. Para alguns representa a oportunidade de arrumar um novo emprego e ter uma nova ocupação. Tem gente que tem medo da aposentadoria, porque não sabe lidar com essa nova situação.

Eu sempre desejei ter a oportunidade de fazer coisas diferentes do que sempre fiz durante a carreira profissional. Eu sempre desejei ter um tempo para viver uma vida mais livre. A aposentadoria me possibilitou a realização desse desejo.

Fazer vinho, cachaça e cerveja. Ter aulas de música. Ser um consultor autônomo na minha especialidade. Retribuir um pouco do que minha cidade me deu, trabalhando 7 anos na Prefeitura, sendo festeiro do padroeiro da cidade ou sendo dirigente voluntário do clube social da cidade. Supri todas essas minhas necessidades. Tinha um compromisso todas as quartas e sábados, jogando no Bengalas de Ouro, composto de jogadores maiores de 50 anos, onde se praticava um esporte muito parecido com o futebol. Nesse time temos hoje companheiros beirando os 80 anos que ainda se aventuram a participar das peladas. É um grupo muito especial que reúne para se exercitar e cultivar a boa convivência.

Cheguei até a escrever um livro de causos, crônicas e poemas. Pretendo agora depois dos setenta, publicar mais um livro. Estava planejado e tinha que ser depois dos setenta porque eu acho que a idade confere à publicação um certo peso ( o da idade ).

A seguir um texto do meu livro IDA E VOLTA já publicado e que descreve uma passagem da minha vida profissional na CETESB.

NO ALTO DA SERRA

Dali eu podia ver o mar. E dava pra entender, na prática, o significado do nome do lugar: Paranapiacaba (de onde se pode ver o mar em tupi-guarani).

Mais uma vez eu estava às voltas com a ferrovia e o mar. Era possível constatar que existem diversos caminhos pra se chegar ao mar.

Ali eu estava por motivos profissionais: eu trabalhava na CETESB e estava envolvido no programa de controle de poluição de Cubatão.

Tinha saído da estação da Luz, num trem especial, fazendo parte de um grupo de especialistas nacionais e estrangeiros que iriam até a Baixada para observar a poluição e seus efeitos na Serra do Mar. Aquele trajeto era interessante: sair da Luz, atravessar a região do ABC, encontrar a velha vila inglesa e descer a serra pelo sistema cremalheira.

Durante a viagem foi inevitável a lembrança da ferrovia Mairinque a Santos. Por ela o menino assustado tinha ido conhecer o mar, sem preocupação, cruzando uma serra verde que exalava no seu frescor um cheiro de mato.

Agora eu chegava por outro lado, cruzando as indústrias, deixando a grande metrópole e ia encontrar a fumaça de Cubatão embarcado num trem que descia a serra numa engrenagem. Era tudo bem diferente.

Paranapiacaba, no Alto da Serra, fica no final do vale do Rio Mogi. É para lá que sopram os ventos, na maior parte do tempo, vindos de Cubatão. A fumaça sobe o vale e vai danificando a vegetação das encostas, seus componentes vão interagindo e se transformando. O vale regurgita e queima a garganta por onde passa o trem.

Descer a serra devagar é prudente e é necessário pra encaixar as engrenagens do trem e da cabeça. É possível ver distante a outra parte da serra onde os cortes da Mairinque a Santos desenham a outra descida.

A outra descida era a do menino que dava mais voltas, se escondia mais vezes nos inúmeros túneis e que tinha que se adaptar ao jogo de luz e sombra. Lá eu vinha de Canguera e ia pra Mongaguá. Meu doce ribeirão ia ficando cada vez mais longe à medida que o salgado do mar se aproximava. Eu não via a hora de chegar.

Volto a olhar para o meu trem de agora. Árvores secas do lado da linha passam devagar. Ouvem-se as máquinas fotográficas registrando as imagens e uma mistura de português, inglês e alemão. Pela janela do trem também se vê o caldeirão do vale a ferver. O “flair” da refinaria a queimar me lembra a Vila Socó a arder em chamas. No meio da fumaça se divisa ao longe a Vila Parisi e imagino seus casebres em cima do esgoto a céu aberto onde brincam suas crianças. As encostas da serra mostram suas feridas. A visão é desoladora. Não dá pressa de chegar.

Eu gostaria de poder trocar de trem numa baldeação mágica. O trem de antes me levava para o céu. O de hoje parece descer ao inferno.

O menino pobre que descia a serra vinha de um lugar muito simples. Havia dignidade naquela pobreza.

O profissional de hoje que desce a serra vem de uma metrópole complexa. O vale é um exemplo da pujança industrial. A realidade do vale é feia. Não há dignidade nesta riqueza.

O céu e o inferno podem estar no mesmo lugar. O tempo traz muitas mudanças. Umas dentro de nós e outras fora. As de fora nos fazem mudar profundamente por dentro.

Aos antigos companheiros de CETESB agradeço profundamente a convivência e o aprendizado. Foi uma experiência agradável e profícua que ocupou uma parte importante da minha vida.

Aos atuais funcionários da CETESB desejo que vocês tenham sucesso nesse importante trabalho de limpar nossas águas, purificar o nosso ar e preservar nosso chão.

Ao Fórum dos Químicos da CETESB agradeço a oportunidade de fazer este depoimento.

Deixo uma reflexão final: a Química foi primeiro meu tormento, depois foi meu sustento e por fim foi minha diversão e arte.

E a vida continua, apesar de toda indiferença da natureza.

MAR INDIFERENTE

Quando eu cheguei
O mar estava ali
Deslumbrantemente lindo
Quando eu parti
O mar continuava ali
Lindo como sempre
O mar não faz mesuras para mim
Ele não liga para mim
Mesmo quando ele me arrebata
Essa sua indiferença me intriga e me encanta
Esteja ou não eu na plateia
Sempre haverá espetáculo.