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Entrevista com o Químico Osmar Dias de Moura
Agência Ambiental de Tatuapé

Químico, fotógrafo, amigo do samba e militante de causas sociais, em especial aquelas relacionadas a identidade e dignidade dos afro-descendentes, Osmar Moura concede entrevista ao Fórum de Químicos da Cesteb, nas comemorações dos 50 anos da empresa

P: De que maneira se deu seu processo de descoberta da química como opção profissional?
R: Em alguns momentos de reflexão, olho para trás e me deixo ficar em atitude meramente contemplativa observando a longa estrada percorrida. Caminhos por vezes tortuosos repletos de sonhos, alguns realizados, outros simplesmente sonhados.
Detenho-me por alguns instantes na segunda metade da década de 70, período em que me preparava para entrar no mercado de trabalho. Depois de longa e cuidadosa avaliação optei pelo curso de Técnico em Química, curso que orgulhosamente concluí em três anos de pura dedicação e imenso prazer. A cada aula, se reafirmava a certeza de haver feito a escolha certa. Os encantos da química eram deveras estimulantes, fazendo adormecer as outras carreiras que também me atraíam, em especial o jornalismo. Já sonhava em dar continuidade aos estudos, mirando um futuro de Mestrado e Doutorado.

P: E seus primeiros passos na carreira, ocorreram conforme o planejado?
R: Não. Sempre fui muito determinado em meus projetos, era um aluno aplicado, com bons índices de aproveitamento, mas isto não bastava. Sempre sofri preconceitos por ser negro e deficiente físico, questões que ainda hoje me apresentam barreiras
No ano de 1977, participei de um processo seletivo na Ciba Geisy. Entre muitos candidatos, o processo encerrou com três, dos quais eu era um. A gerente do RH nos informou que estávamos classificados e que um dentre nós seria chamado para os procedimentos admissionais e os outros iriam para o cadastro de espera. No dia seguinte recebi um telegrama pedindo que me apresentasse com os documentos. Eu fora o escolhido. No dia e horário agendado, me apresentei radiante, fui recebido pelo RH, e em seguida encaminhado ao departamento médico. Ao retornar para o RH fui informado de que o gerente do laboratório para onde eu seria designado havia gostado do meu desempenho no processo e gostaria de me conhecer, mesmo antes de meu início oficial. Já era horário de almoço e fui encaminhado ao refeitório, ficando acertado que ao retornar do almoço, iria conhecer meu futuro gerente.
Nunca esquecerei aquele inicio de tarde. Exatamente as 13h15min, fui levado ao laboratório, meus olhos se encantavam com o que viam enquanto percorria o longo corredor ladeado por bancadas. Chegamos ao que imaginei ser a sala do gerente. Ele não estava. A pessoa que me acompanhava pediu que o aguardasse e se retirou. Em poucos minutos a porta se abriu e um senhor aparentando uns 50 anos vestindo um avental surrado e com muitas manchas entrou na pequena sala. Ao me ver parou, seus olhos varreram-me da cabeça aos pés, fitou-me com ar de espanto e perguntou.
– Você é o Osmar?
– Sim senhor, respondi.
Saiu sem articular uma única palavra.
Após alguns minutos a funcionária que havia me levado até lá retornou pedindo que a acompanhasse. Fui levado ao que me parecia um laboratório desativado. Alguns minutos depois aquele senhor entrou e sentou-se à minha frente, me dizendo que iria fazer uma rápida entrevista. Fui sabatinado por aproximadamente 15 infinitos minutos, respondendo inúmeras perguntas, das quais respondi a grande maioria, com plena convicção de que estavam certas.
Fui reconduzido ao RH, que pediu que aguardasse novo telegrama, telegrama que até hoje não chegou.

P: Depois dessa primeira experiência frustrada que caminhos você seguiu para atuar como químico?
R: Ao raiar do ano de 1978, é chegada a hora de buscar estágio, o momento de iniciar uma longa viagem. É o inicio da carreira. Se a escolha do segmento em que se deseja ingressar já era por si só um grande desafio, o que se dizer de fazer tal escolha em um momento de profunda crise econômica e grande desemprego. O momento não era de escolher o que se desejava, mas sim de abraçar firme e forte a oportunidade que surgisse. Assim o sonho de ingressar em algum laboratório de pesquisas e desenvolvimento foi substituído por uma vaga em um laboratório de uma pequena empresa de galvanoplastia.
Desde então foram alguns saltos buscando novas e melhores colocações, porém o sucesso parecia cada vez mais distante, e o desemprego não tardou a chegar. A empresa em que trabalhava na Vila Carioca sucumbiu diante da forte crise que abalava o país e assim vi ruírem meus sonhos e minha carreira, tendo que trancar a matrícula no curso de bacharelado em ciências químicas.
Após longos meses, surge a oportunidade de retornar ao mercado de trabalho, mas agora já sem condições de retomar os estudos, pois já era casado e pai, o que me trazia novas obrigações.
Assim, sob um céu de muitas nuvens, segui por escabrosos caminhos.

P: Apesar das dificuldades relatadas você seguiu na profissão e veio parar na CETESB. Conte um pouco sobre essa trajetória.
R: Continuei minha caminhada, tendo atuado em pequenas empresas que prestavam serviços de galvanoplastia. Saliento que neste período passei a perder o encanto pela profissão, pois além de não me identificar com o que fazia, presenciava grande descaso em relação ao corpo funcional, em especial nos quesitos de segurança, e também em relação às questões ambientais. Em março de 1985 ocorreu uma grande mudança. Após um longo processo seletivo, fui admitido pela Cia Níquel Tocantins, uma empresa do grupo Votorantim. Foi seguramente um período de grande satisfação. A empresa produzia catodos de níquel e também de cobalto eletrolítico, ambos com 99,99% de pureza. Iniciei como técnico de produção, tendo posteriormente atuado em todas as áreas do processo fabril. Após dois anos passei a ocupar o cargo de supervisor de produção, tendo sido dispensado em 1992 em razão de uma reestruturação que buscava um ajustamento devido a uma nova crise econômica que atingiu o país. Minha identificação com o processo foi tamanha, que mesmo após quase três décadas ainda me recordo com riqueza de detalhes de cada fase do processo, de cada equipamento, de seus números de identificação e dos intervalos de concentração de quase todas as etapas do processo.
Não conseguindo recolocação, me vi obrigado a seguir outros caminhos. Com parte da indenização abri uma pequena mercearia, que logo vendi por não me adaptar ao trabalho. Tornei-me camelô, sacoleiro no Paraguai; também vendi hot dog, caldo de cana e por fim montei um bar que acabou se tornando uma casa de samba de raiz, o Quilombo, por onde passaram nomes como Luiz Carlos da Vila, Wilson Moreira, Eliana Farias, Délcio Carvalho, e Beth Carvalho. A Beth, em sinal de aprovação pelo bom trabalho da casa, me agraciou citando o nome da casa e o meu nome em seu disco “Pagode de mesa 2”. Apesar do grande sucesso, a falta de habilidades com o comércio resultou em seu fechamento precoce no início do ano de 2001.
Sem recursos financeiros, sem horizontes, foram longos meses de desconforto e incômodo, sobrecarregando minha esposa com a manutenção de nossas despesas e ainda amortecendo as dívidas contraídas com o bar. Situação que perdurou até meu ingresso na CETESB.

P: Você já admitiu que o ingresso na Cetesb foi uma espécie de divisor de águas em sua carreira profissional. Conte-nos um pouco sobre isso.
R: No ano de 2002, descobri a oportunidade de reescrever minha história, ao tomar conhecimento do concurso público a ser realizado pela CETESB. Na época já havia dez anos que me afastara completamente da química. O desafio foi grande mas o desejo de vitória foi maior. Prestei o concurso, fui classificado e hoje me sinto honrado em fazer parte do brilhante quadro de funcionários desta Cia. Retomei os estudos, tendo me formado pela Faculdade Oswaldo Cruz.
Hoje, com quinze anos de serviços prestados à CETESB, sete dos quais nos laboratórios da divisão de Química, os demais atuando no controle, me sinto realizado, não só por haver alcançado meus objetivos, mas também pela certeza de haver dado minha pequena contribuição ao processo de construção de um meio ambiente mais saudável e de um mundo um pouco melhor.

P: Se sentindo realizado na profissão e próximo da aposentadoria você certamente mira novos horizontes. O que pode nos dizer a este respeito?
R: A vida é muito breve e consumi grande parte dela com o trabalho, agora quero estar mais tempo com minha família, cooperar com os serviços assistenciais do centro espírita kardecista que frequento, devorar meus livros de fotografia e executar muitos projetos fotográficos.
Nos últimos cinco anos passei a me dedicar ao estudo da fotografia, um desejo quase abortado quando optei pelo curso de Técnico em Química.
Ao olhar para o futuro, vejo que se se aproxima o momento de alçar novos voos, enfrentar novos desafios e realizar antigos sonhos. Ao observar o passado me sinto revigorado para trilhar os novos caminhos.
Nos planos de curto prazo, está a difícil decisão de encerrar minha estadia nesta companhia, onde tive a oportunidade de consolidar minha vida profissional, mas quando chegar o momento, partirei levando comigo um grande e importante capítulo de minha vida escrito ao lado de colegas com os quais muito aprendi e para os quais desde já deixo meu fraternal abraço.

P: No universo da fotografia, qual é a sua abordagem preferencial e o que a torna mais que um simples hobby?
R: Gosto de fotografar pessoas, capturar sentimentos emoções, gosto de música e por consequência costumo fotografar eventos musicais, mais frequentemente as rodas de samba que costumo frequentar, mas também gosto de outras vertentes, em especial da música negra. Vejo na fotografia uma importante ferramenta de registro que nos ajuda a compreender melhor o passado, e também acredito que a fotografia é um instrumento de denúncia capaz de cooperar com a construção de um novo e melhor futuro.

P: Conte um pouco sobre sua experiência junto ao pessoal do samba e o resgate dessas raízes.
R: Os grandes mestres do samba eram músicos e poetas brilhantes. Pessoas simples, dotadas de grande sensibilidade e depositárias de muitas histórias que se mantiveram vivas por muito tempo graças à oralidade daqueles que os antecederam. As rodas de samba de terreiro têm como principal objetivo a pesquisa, resgatando obras e obreiros do mundo do samba e nos ajudando a melhor compreender nossas origens. Merece especial atenção o trabalho do Terreiro de Samba de Mauá e do Instituto Glória ao Samba.
Recentemente a filha 11 anos de um casal do Terreiro de Mauá surpreendeu sua professora ao apresentar um trabalho sobre a História do Brasil. A garota escolheu Chica da Silva como tema. A professora, que desconhecia muitos dos detalhes da redação, após pesquisar e constatar que eram procedentes, chamou os pais, que esclareceram que a menina escreveu com base no que ouvia durante os encontros de pesquisa e estudos.
Como disse o Mestre Candeia: “Enquanto se luta se samba também”.

P: Você pode deixar alguma mensagem para o pessoal do Fórum dos Químicos da Cetesb?
R: Que a ciência das reações e transformações que elegeram como profissão, possa promover em suas vidas um processo continuado de reações interiores cujos produtos sejam a paz e a harmonia, para que ao final de suas carreiras possam dizer-se plenos.

Fotografias de Osmar Moura – Exposição Químico Artista – Cetesb – junho de 2014